Panta rei e Coronavírus

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por Professor Maurício Vaz de Oliveira

 

 

Heráclito2 e minha avó tinham algumas coisas em comum, apesar do fato de distarem mais de dois mil anos e daquele ser muito mais famoso, no restante eles tinham muito em comum.

 

Quando eu era criança o passeio mais aguardado por mim e minhas três irmãs era a viagem para casa da vovó em MG. Essa viagem era o argumento maior com que nossa mãe nos ameaçava para nos mudar o comportamento. Uma briga entre nós e lá vinha minha mãe com frases terríveis para crianças apaixonadas pela estrada da vovó. “Já sei quem não vai viajar esse ano…”.

 

Hoje vejo que para mim essa viagem despertava o mesmo espírito que os gregos sentiam ao atravessar o mar Egeo3 indo ao encontro das muralhas troianas. Meus primos maiores eram o exército de Heitor4 a ser vencido. Eles não eram canduras de crianças. Certa vez, me convenceram a comer um tipo de fruta vermelha com a promessa que eu não havia experimentado nada igual. De fato, nunca havia comido nada como aquela pimenta. Meus lábios ficaram tão inchados que eu nem conseguia explicar para minha mãe que não tinham sido maribondos.

 

Pois bem, nossa avó morava numa propriedade onde corria um riacho idílico5. Ele era margeado por areia branquinha e fofa aqui e acolá. Apesar do tanino na água era possível ver as piabas nadando próximas às margens. Lá, eu e meus primos, vivíamos nosso cerco à Troia6. Uns dias lutávamos, noutro apostávamos quem atravessava o pequeno riacho a nado. Eu, via regra, pequeno, gordinho e da cidade, ficava em último em todas as brincadeiras. O que sinceramente não me incomodava em nada. Meus primos também cuidavam de mim. No fundo eu sabia que eu ansiava tanto por viajar quanto eles pela minha chegada anual, que marcava as férias e as aventuras nas veredas.

 

Numa dessas brincadeiras as coisas ficaram mais perigosas. Minha avó possuía alguns animais de fazenda. Minha grande ambição sempre fora montar no ventania. Essa, no entanto, era a única proibição que a minha mãe fizera.

Numa tarde de quinta-feira, às margens do nosso Egeo, surgiu meu cavalo de Tróia7. Sem cela e nem cabresto, apenas com uma corda no pescoço, lá vinha o ventania com um dos meus primos em seu lombo em pelo. Meus olhos de menino arteiro brilharam. Dessa vez, não foram eles que me colocaram em perigo com suas mentiras pueris. Eu mesmo insisti para que me deixassem montar. Eles diziam que o nosso bucéfalo8 era bravo, eu mentia que já havia montado antes, que éramos amigos e irmãos… Disputa vencida, meu coração rompia a acelerar como o do animal. Vi um cupinzeiro ao longe. Pedi que meu primo levasse o cavalo até lá. Tive que escalar a casa dos insetos para dar a altura do lombo do animal. Num salto piruético alcancei meu desafio, que assustado disparou num galope frenético. Em menos de quinze metros estava eu despencado no chão. O cavalo irritado deu um passo para trás e pisou minha coxa. Era o fim daquelas férias.

 

Nos dias que se passaram, entre febres e inchaços, minha mãe e minha avó se revezavam ao lado do meu leito. Eu pensei que perderia a minha perna. Enquanto minha mãe ora brigava comigo ora chorava, com a intensidade de sua consciência pesada; minha vó ficava sempre serena. Um dia, com as duas próximas à cama, eu fingia dormir com medo de mais bronca, ouvi minha mãe perguntar à sua porquê de sua tranquilidade irritante. Ao que o meu “Heráclito de chita9” disse: Tudo isso vai passar. Ou ele vai sarar ou não. Ou vai andar ou não. Não há mal que sempre dure e bem que não se acabe. De qualquer modo ele vai aprender. E é só isso que importa na vida.

 

 

Glossário

  • PANTA REI – os potamós (do grego πάντα ῥεῖ ), traduzido como “Tudo flui como um rio” é o célebre aforisma no qual a tradição filosófica subsequente identificou sinteticamente o pensamento de Heráclito com o tema do devir, em contraposição à filosofia do ser próprio de Parmênides.

     

  • HERÁCLITO – Heraclito ou Heráclito de Éfeso foi um filósofo pré-socrático considerado o “Pai da dialética”. Recebeu a alcunha de “Obscuro” principalmente em razão da obra a ele atribuída por Diógenes Laércio, Sobre a Natureza, em estilo obscuro, próximo ao das sentenças oraculares.

     

  • MAR EGEO – O mar Egeu é um mar interior da bacia do mar Mediterrâneo situado entre a Europa e a Ásia. Estende-se da Grécia, a oeste, até a Turquia, a leste. Ao norte, possui uma ligação com o mar de Mármara e o mar Negro através do Dardanelos e do Bósforo.

     

  • HEITOR – era, na mitologia grega, príncipe de Troia e um dos maiores guerreiros na Guerra de Troia, suplantado apenas por Aquiles. Era filho de Príamo e de Hécuba e irmão de Páris.

     

  • IDÍLICO – Adjetivo Que se refere a idílio; de caráter idílio; pastoril, puro, bucólico.

     

  • TRÓIA – É uma cidade lendária, onde ocorreu a célebre Guerra de Troia, descrita na Ilíada, um dos poemas atribuídos a Homero.

     

  • O CAVALO DE TROIA foi um grande cavalo de madeira construído pelos gregos durante a Guerra de Troia, como um estratagema decisivo para a conquista da cidade fortificada de Troia, cujas ruínas estão em terras hoje turcas.

     

  • BUCÉFALO foi o cavalo de guerra de Alexandre, o Grande, rei da Macedônia e fundador de um dos maiores impérios da antiguidade.

     

  • CHITA é um tecido de planta barato, e antigamente de pouca qualidade, com estampas de cores fortes, geralmente negras, e tramas difíceis.

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